top of page

Noite nua

  • Foto do escritor: Antonio Augusto Brito
    Antonio Augusto Brito
  • 5 de out. de 2017
  • 2 min de leitura

curta botafogo

surta, botafogo

– Boa noite, menino.

– Boa noite, Seu Chagas.

Esse era o diálogo de toda noite no corredor do sexto andar.

Eram as últimas palavras que eu dizia no dia, e, provavelmente, as últimas do Seu Chagas também.

A não ser que ele continuasse à espreita aguardando mais alguém sair do elevador – o que duvido muito, posto que a breve troca de dizeres costumava ocorrer por volta de onze horas da noite.

Seu Chagas morava sozinho, como eu.

No apartamento ao lado do elevador, de frente à minha porta.

Aqui na rua da Passagem, tem um quarto e sala bem honesto.

O problema é que o apartamento do Seu Chagas dá pros fundos, ou seja, tem outro prédio bem na frente bloqueando a entrada de ar na sala e, por consequência, para os outros poucos metros quadrados da simplória residência.

De modo que, em noites mais quentes, o coroa deixava a porta da casa entreaberta para que a mais tímida corrente que passasse pelo corredor do sexto andar pudesse trazer os ventos de uma noite menos abafada.

E era por essa brecha de uns quinze centímetros, entre a porta e o portal, que Seu Chagas me saudava a cada noite abrasada.

Às vezes, não conseguia vê-lo, dado o breu na casa do aposentado.

Apenas confiava que a voz não vinha do Além e respondia.

De umas semanas pra cá, venho sentindo falta do velho.

Não ouço mais aquela voz que denunciava o fumo excessivo.

Procurei saber com o porteiro.

Não soube explicar o repentino sumiço do meu vizinho.

"Deve ter ido pra casa da família", pensei.

Se é que a família se preocupa com o coroa.

Se é que ele se preocupa com a família.

Se é que o coroa tem família.

Se é que se é.

(...)

Deixei pra lá.

Até ontem.

– Boa noite, menino.

Tomei um susto.

Conhecia aquela voz, mas a porta do Seu Chagas estava fechada.

"Pronto. Essa porra tá vindo do Além. Ave Maria, cheia de graça..."

Foi minha primeira reação, enquanto eu tentava focar em conseguir abrir a porta de casa sem cair na tentação de olhar pra nenhum dos dois lados do corredor.

Aprendi isso com os filmes de terror.

Amém.

– Ô, menino!

Travei.

A chave caiu no chão.

Fodeu.

Entupi-me do resto de coragem que estava quase sendo expelida pelo espremido rabo e olhei pro fundo do sexto andar.

Seu Chagas parado, com um saco de lixo enorme na mão.

De frente pra mim.

Nu.

Os bagos enrugados num emaranhado difícil de decifrar.

– Boa noite, menino - disse, ao ver que correspondi o olhar.

Não sei se o velho reparou, mas eu estava completamente aterrorizado.

E já tinha lançado à atmosfera todos os gases conhecidos pela Química àquela altura.

– Tu tá nu, Seu Chagas? Quer ajuda?

– Nada, menino... Vou jogar as roupas fora. Preciso mais delas não.

– Ah... Tá bom. Boa noite.

Catei a chave, abri a porta e bati com força e desespero.

Olhei pelo olho mágico, em choque.

Seu Chagas voltou pro apartamento e bateu a porta. Afinal, não teria por que deixá-la entreaberta. A noite estava fresca. Choveu depois.

* Marcos Luca Valentim é jornalista, cronista e poeta

Outros surtos

Posts recentes

Ver tudo

Comments


© 2017 CURTA BOTAFOGO | Direitos reservados | Reprodução autorizada desde que citada a fonte. 

bottom of page