Ovo cozido
- Antonio Augusto Brito
- 15 de set. de 2017
- 2 min de leitura

O telejornal bem lembrou: foi só as passagens de ônibus baixarem de preço, e, misteriosamente, instaurou-se a sauna ambulante novamente.
Junto aos vinte centavos, o ar-condicionado foi eliminado dos coletivos como num passe de corrupç... Mágica.
Logo, a cólera de Iúri é totalmente justificável.
Pegou o Integrada 3 no ponto final, ali na Nelson Mandela, bem ao lado da saída do metrô da Voluntários.
É aquele que vai até a Alvorada num tiro só.
Iúri, aliás, tem a liberdade de escolher praticamente qualquer ônibus que ultrapasse a Guardiã do Caos (a.k.a. São Clemente).
Trabalha no Jardim Botânico.
Mas, faceiro, pega o Integrada 3 no ponto final e se dá ao luxo de escolher assento e ir acomodado sob o gelado sopro da maior invenção do homem desde a roda.
Nesta terça-feira, fez o que faz toda manhã.
Mas não contava com a astúcia das empresas de ônibus.
Sem ar.
O ônibus e Iúri.
– Motorista, esse é sem ar mesmo? – perguntou, tão logo sentou-se lá atrás.
– Cortaram, parceiro. Não posso fazer nada...
Pronto.
Iuri nunca mais foi o mesmo.
À força, rompeu o lacre da janela e estuprou-a em nome de um bem maior.
"Ela estava com o lacre curtinho, tava pedindo", diriam os bolsominions.
O fato é que até o terceiro ponto da Guardiã do Caos, em frente ao Santo Inácio, o coletivo levou 25 minutos.
Às 8h, a rua é tão lenta quanto uma lesma de patinete dando ré.
O ônibus encheu, de forma que uma mulher acomodou-se ao lado de Iuri.
Na descida do Humaitá para o Jardim Botânico, o asfalto deu ao homem curta sobrevida, posto que que o tráfego se desfez por singular instante, e um vento foi recebido com prazer pela face de Iúri.
Mas não pela da mulher.
– Nossa, que vento frio! Pode fechar um pouco a janela? – pediu, delicadamente, a moça que trajava um vestido de alça, decotado e sem mangas.
Que erro...
Iúri, como disse, nunca mais foi o mesmo.
– Lógico que não!
– Calma, moço... É que bateu um vento, tá frio aqui! Eu, hein!
– Então bota um casaco, ué! O que não dá é pra eu ficar nu aqui!
"Nu aqui, nu aqui, nu aqui"... Parecia ecoar dentro do ônibus, pois os passageiros todos torceram o pescoço para mirar no tresloucado Iúri.
– Estão olhando o que aí? Eu posso ficar nu, por acaso? Ah, que ideia...
Sem respostas.
Mais adiante, saltou.
Entrou no escritório ainda visivelmente transtornado.
Cumprimentou com breve aceno os poucos que ali já estavam.
Sentou.
Calor.
No alto da sala, o termostato do ar-condicionado explicava: 27°C.
– Gente, cadê o controle disso? 27°C? Pelo amor de Deus...
– O Roberto tá gripado, Iúri... É por isso. O controle tá na mesa dele – respondeu Paula.
Iúri engoliu um brejo inteiro de sapos, mas nada disse.
A vontade era despejar uma dúzia de coristinas na mesa do Roberto.
Mas Roberto é o chefe do escritório.
Sendo assim, Iúri calou, suou, lavou o rosto... E repetiu o processo durante todo o dia.
Era melhor ter ficado nu no ônibus.
Mais vale um pássaro livre do que dois ovos cozinhando.
* Marcos Luca Valentim é jornalista, cronista e poeta
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