Vida de cão
- Antonio Augusto Brito
- 30 de ago. de 2017
- 3 min de leitura


Tim tem medo de avião.
Isso, claro, quando toma seu remédio.
Quando não, é pavor mesmo.
Terror.
E o canadense não esconde isso de ninguém, de modo que, quando chegou ao Rio na semana passada, teve de ser carregado pela esposa para desembarcar da aeronave.
A quantidade cavalar de calmante o derrubou – e ele adorou isso.
Olhos entreabertos e trôpego como um bêbado, Claire teve trabalho para conduzi-lo até a esteira onde se recolhe a bagagem.
Tim só foi começar a acordar no táxi a caminho do hotel.
– Eu cheguei a jantar?
– Jantou. Comeu um macarrão que serviram, eu te acordei na hora. Quer dizer, tentei acordar, porque você estava mastigando de olhos fechados – respondeu Claire.
O casal de canadenses riu e, minutos depois, fez check-in no Ibis, na Rua Paulino Fernandes.
Pela frente, nove dias na Maravilhosa.
No primeiro, foram à praia, apesar do céu meio cinza.
No segundo, Corcovado e noite na Lapa.
No terceiro, Museu do Amanhã, Uruguaiana e mureta da Urca.
No quarto, praia de novo, Jardim Botânico e tour guiado no Santa Marta.
No quinto...
Bem, no quinto...
A seguir.
Tim e Claire tomaram café no hotel, como de costume, e saíram.
Foram à Escadaria Selarón de metrô.
Saltaram errado, na Carioca, mas, quando se está de férias, o tempo perdido consigo não é tempo perdido.
Curtiram a caminhada.
Mais um azo para nova sessão de fotos.
Na obra-prima do excêntrico chileno, poses mil, e novos cliques nos iPhones.
Subiram.
E subiram mais um pouco.
E, em Santa Teresa, se perderam.
A cada nova curva, um ângulo diferente, um feitiço, uma fotografia em movimento, moldurada, maturada para a captura.
A tarde chegou, e comeram pães de queijo no Parque das Ruínas.
A noite avançou, e foram comidos pela incerteza.
O caminho de volta, já não lembravam.
– É pra cá?
– Não sei, Claire. Vamos descer que, uma hora, chegamos lá embaixo.
A imagem que o Rio faz de si lá fora começou a martelar nas mentes dos gringos.
Eram 20h, e, a cada sujeito que aparecia no caminho, o medo invadia com força.
"Canadenses se perdem em Santa Teresa e são estuprados e mortos por bandidos".
A criatividade de Tim agia em conluio com o horror para fabricar os jornais do amanhã.
Na infinita descida, algo lhes chamou atenção: um cachorro.
De maneira displicente, o animal vinha acompanhando os dois desde o Parque das Ruínas.
À certa altura, Tim estranhou.
– Você reparou que esse cão está seguindo a gente há umas duas horas?
– Verdade! Será que é de alguém?
– Isso é ruim, Claire. Cachorro é mau agouro...
– Ai, não começa com suas maluquices, Tim! Cachorro é símbolo de alegria.
– Você tá maluca! Cachorro é má sorte, tanto é que esses bichos veem espíritos!
– Tá bom, Tim. A gente deve estar com algum cheiro que chamou a atenção dele, só isso.
– Isso é um presságio, um mau agouro.
Os três continuaram a descida por uma sinuosa e mal iluminada ruela de paralelepípedos.
Claire e Tim começaram a fazer testes.
Paravam abruptamente, e o cão parava também.
Punham-se a correr ladeira abaixo, e o cão acelerava.
- Não estou gostando disso, Claire...
- Relaxa, homem! Pelo amor de Deus... Deixa o cão em paz, e vamos sair logo daqui.
Quando, enfim, se viram no Catete, já em terra plana, o cão parou junto aos dois, encarou-os por poucos segundos e desapareceu na noite.
Claire entendeu que o animal foi um anjo enviado para mostrar-lhes o caminho de volta.
Tim continuou alimentando suas crenças soturnas.
Pegaram um táxi até Botafogo.
Pararam no Burger King.
Já no Ibis, tomaram banho, transaram e dormiram.
Os dias que seguiram foram de igual teor turístico.
Porém, ontem, acordaram às 3h.
O voo para Toronto saía do Galeão às 7h.
Colocaram os últimos pertences na mala, fizeram check-out e foram para a porta do hotel aguardar a chegada do Uber.
Mas, em vez do carro, o cachorro os aguardava.
O cão.
Tim olhou com terror para a figura, estática na esquina da Paulino Fernandes com a Professor Álvaro Rodrigues.
Para acalmar o marido, Claire disse que era outro cachorro.
No fundo, sabia que era o mesmo – e isso a perturbou um pouco também.
O Uber chegou.
Foram até o Galeão sem dizer nada.
No saguão, Tim se prendeu ao fundo dos olhos da amada e segurou-a pelos ombros.
– Claire, esse avião vai cair. Vamos trocar o voo.
A mulher foi invadida por um misto de terror e certeza instaurados pelo marido e consentiu com a cabeça.
Embarcaram ao meio-dia.
Tim tomou seus remédios às 11h e apagou durante todo o voo.
Sonhou com o cachorro.
O avião caiu.
* Marcos Luca Valentim é jornalista, cronista e poeta
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