Bilíngue
- Antonio Augusto Brito
- 1 de ago. de 2017
- 3 min de leitura


– Dona Ivone, pode chamar o próximo, por favor.
Xavier colocou o telefone no gancho e aguardou.
O olhar sereno, com seus óculos meia-lua na ponta do nariz, sorriu com a mensagem da esposa no WhatsApp.
"Pedro tirou nove em Ciências".
Xavier ficou todo bobo.
Não é segredo que ele quer ver o filho vestindo o mesmo jaleco.
– Pode entrar – respondeu, assim que o próximo paciente bateu na porta. Repousou o celular sobre a mesa.
– Bom dia, doutor.
– Bom dia, Ana. Tudo bem? O que está acontecendo com você?
– Então, doutor. É minha primeira consulta aqui, confesso que relutei. Minha mãe foi quem praticamente me obrigou a vir, na verdade – começou a contar a jovem, na casa dos 25, com um leve sorriso.
Xavier inclinou-se sobre a mesa, cotovelos apoiados, uniu as mãos em trança de dedos.
– O que você está sentindo?
– Sinto umas dores nessa região aqui, um desconforto. Geralmente, na hora de dormir – contou a moça, enquanto passava a palma da mão entre os seios.
– Entendi.
– Minha mãe fica com medo de ser problema de coração, porque meu pai é cardíaco também.
– Vamos fazer um eletro pra ver como está esse coração. Tire a blusa, por favor.
Ana, de pronto, obedeceu.
Xavier contornou a mesa, passando pela estante com dezenas de livros em português e inglês sobre cardiologia, e pediu para que a paciente se deitasse na cama ao lado.
Não teve como deixar de reparar nos escritos que ela trazia na costela.
"A vida é uma life".
Ficou intrigado com a tatuagem.
Xavier guarda as coisas.
Em poucos minutos, exame feito.
Ana já vestida, e Xavier analisando o computador.
– Está tudo normal com o seu coração, menina. Aparentemente, não há motivos para preocupação. Mas, por desencargo de consciência, vou passar uma bateria de exames para você fazer. Já fez check-up alguma vez?
– Não. Olha, agora está começando a doer de novo... – alertou Ana, com a mão no peito.
Xavier ficou de pé.
– Levante-se, por favor.
Ana ficou de pé.
E, numa manobra usando os braços da moça envolvendo a barriga, Xavier quase deu início à terceira guerra mundial.
O barulho, com o testemunho dos outros pacientes que aguardavam na sala do lado de fora, era de uma bomba atômica.
O peido de Ana foi algo sobrenatural.
– Meu Deus!
– Acho que agora melhorou, né? – perguntou Xavier, enquanto Ana tentava, com claras falhas, esconder o rubor que lhe invadiu o rosto.
– Sim, sim... Melhorou – respondeu, desconcertada.
– Bom, eram só gases, mas vamos manter os exames, ok? Toma aqui. Quando receber os resultados, você volta, tá bom?
– Tá, doutor. Obrigada.
Xavier ofereceu a mão em cumprimento.
Ana, ainda chocada pelo monumental artefato explosivo que acabara de produzir, aceitou, sem nem levantar os olhos.
O doutor a acompanhou até a porta do consultório e, em seguida, voltou para a mesa.
Foi direto ao Google.
Não achou explicações para "a vida é uma life".
Mandou mensagem no grupo dos amigos que jogam basquete com ele no Aterro às quintas-feiras.
"Aê, cambada. Alguém sabe que porra é essa de 'a vida é uma life'? Veio uma paciente aqui agora com isso tatuado na costela".
As respostas foram baseadas em risadas e teorias mil.
Uma mais infundada que a outra.
Xavier guarda as coisas.
À noite, à mesa de jantar, parabenizou o filho pelo desempenho em Ciências.
O moleque riu e pediu esse novo brinquedo que fica girando nos dedos.
Xavier negou, com bom humor.
Em troca, deixou para o filho o último bife.
Deitou-se com a mulher.
– Amor, de 0 a 10, o quanto você me ama?
– Ih... Vai pedir coisa, te conheço... – Juliana baixou o livro e virou-se para Xavier.
– Massagem no pé.
– Ah, Xavier... Já estou deitada, pronta para dormir...
– Por favor! Nunca te pedi nada!
– Aff! Tá bom...
(...)
– Mais pra cima.
– Aqui?
– Mais pra baixo.
– Assim?
– Não, usa o nó dos dedos.
– Ai, Xavier! Vou fazer do meu jeito!
– Tá, mais pra baixo.
– Aqui?
– Não, pra cima.
– Se decide! Não sabe o que quer da vida!
Realmente, não sabia.
Ali, naquele momento, naquele preciso momento, Xavier era possuído por apenas uma certeza,
– Calma, amor... A vida é uma life.
* Marcos Luca Valentim é jornalista, cronista e poeta
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