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Mama África

  • Lucio Valentim
  • 18 de jun. de 2019
  • 3 min de leitura

curtabotafogo leminski

A escravidão sempre esteve presente na história do homem. Quer seja no Ocidente, quer seja no Oriente.

Desde os antigos tempos bíblicos, os hebreus, conforme se sabe, já teriam sido vendidos como escravos. Foi a antiguidade clássica greco-latina que parece ter moldado o conceito.

A escravidão aparece como consequência da democracia, uma vez que no momento em que se construía a ideia de polis – e por conseguinte a de cidadão – se delineava também o conceito do não-cidadão, do subalterno. Neste caso identificado, via de regra, com o forasteiro. A este se permitia escravizar. Todos brancos. Ou quase.

Contudo, como o último advento escravista da história humana remete à escravidão negra, para muitos ainda resta o equívoco da sinonímia escravo = negro.

Dessa forma, soa quase incrível saber que haja entre nós quem acredite – por pura deficiência cognitiva – que hordas de mulheres e homens negros tenham chegado aos trópicos para se deixarem escravizar, por livre e espontânea vontade.

José Eduardo Agualusa – que ao lado do moçambicano Mia Couto é uma das mais importantes vozes da atual narrativa africana – fez espontaneamente a ponte Rio-Luanda, para viver no Brasil.

Trouxe consigo, em O ano em que Zumbi tomou o Rio, o mítico personagem histórico dos Palmares, redivivo na figura de um esguio angolano vendedor de armas para traficantes de favelas. E que logo tornar-se-ia o rei do Rio.

Curioso é que os personagens de Agualusa trazem suas vozes d’Àfrica – de Huambo, de Luanda, de Benguela – direto para o bairro de Botafogo:

Lembra-se do velho negro que encontrou em Botafogo. “Caô Cabiecilê!” Bárbara estremece: “Como?” “O que significa isso?” “Porquê? Nunca vi você interessado nos nossos cultos.” “O que significa?” “Calma, meu bem, é a saudação a Xangô nos terreiros de Candomblé”.

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O ano em que Zumbi tomou o Rio mostra também que, junto à linguagem da macumba, para dominar o novo quilombo – a favela –, isto é, para reinar numa cidade como o Rio, o Zumbi africano traficante deverá promiscuir-se com toda a escória oficial:

(...) Ele repete o que disse há pouco, de um orelhão em Botafogo, assim que se viu na rua. (...) está preso no seu próprio apartamento. O prédio foi cercado por bandidos. Um deles reconheceu-o e conduziu-o ao apartamento do governador.

O texto de Agualusa – embora proponha uma conexão Rio-Luanda – acaba por retratar nossa gente de bem, seus postos, seus bens, bem como seus endereços luxuosos nas luzes da cidade – bem longe d’África:

O governador (...) mora sozinho no trigésimo andar do Edifício Apolo, um dos mais altos da cidade, com vista sobre a Enseada de Botafogo, o Pão de Açúcar, o Corcovado, o Morro Dois Irmãos, e muito ao fundo, confundindo-se com a bruma, a pedra da Gávea.

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*Lucio Valentim é professor de Literaturas, doutor em Letras Vernáculas e pesquisador visitante no Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC) da UFRJ

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