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Saliência em Botafogo

  • Foto do escritor: Antonio Augusto Brito
    Antonio Augusto Brito
  • 18 de set. de 2017
  • 3 min de leitura

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São Clemente -1928 - aquarela sobre papel

Na exposição Cícero Dias – um percurso poético (1907-2003), em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil, um quadro entre tantas obras do genial pintor pernambucano serviu de pretexto para esta crônica. Rua São Clemente é o nome da obra pintada por Cícero Dias em 1928. Nela, o artista retrata, na rua São Clemente 30, um prostíbulo e, do outro lado da rua, uma delegacia de polícia. No alto da tela, um soldado e uma prostituta trocam carícias.

Sexo e hipocrisia nunca foram novidades por aqui. Os primeiros portugueses que aportaram em Pindorama logo foram se miscigenando com as índias. Isso preocupou tanto a igreja que o Padre Manoel da Nóbrega escreveu para El Rey pedindo mulheres brancas com urgência para que a raça branca prevalecesse na colônia. Vieram, então, meninas órfãs, mas também vieram ladras, prostitutas e assassinas. Deus escreve certo por linhas tortas, diria Nóbrega, sem ruborizar.


Com a chegada da corte portuguesa ao Rio de Janeiro, em 1808, a prostituição virou uma alternativa de trabalho para boa parte da população. Carruagens eram motéis ambulantes – com a cumplicidade dos cocheiros –, e muitos vendedores de flores ou de doces eram, na verdade, alcoviteiros que utilizavam o disfarce para oferecer sexo.

No Rio de Janeiro de 1845, meretrizes eram divididas em três classes: as aristocratas ou de sobrado, as de sobradinho ou de rótula*, e as de escória. As primeiras ficavam instaladas em belas casas com espelhos e um piano, símbolo burguês do negócio. Eram mantidas por ricos políticos e fazendeiros. As de segunda classe trabalhavam em pensions d’artistes**, hotéis ou em casas de costureiras de Botafogo e do Jardim Botânico. Elas ficavam em praças, nos mercados e ao longo das avenidas mais movimentadas à espera dos clientes. As meretrizes da escória eram moradoras de casebres ou mucambos, conhecidos como casas de passes ou zungus. Atendiam em cortiços insalubres pertencentes a quitandeiros ou nos fundos das barbearias que eram alugados, a módica quantia, por pretos libertos.

Em Botafogo, um bairro democrático, havia oferta para todos os gostos e posses: em sobrados de luxo, casas de costureiras ou cortiços.

Entre o final do século XIX e o início do século XX, a prostituição havia se institucionalizado na sociedade brasileira. E, naturalmente, artistas e intelectuais não poderiam ficar alheios àquela revolução, por tudo o que o sexo pago tinha de transgressor e, ao mesmo tempo, de libertador numa sociedade hipócrita, que pregava a virgindade como virtude enquanto convivia com sífilis e toda a sorte de doenças venéreas. Cícero Dias e seus pares relacionavam-se com as coquettes – assim chamadas as prostitutas elegantes, geralmente atrizes de espetáculos de variedades –, que divertiam seus convivas, mas também participavam das discussões sobre política, artes e economia. Graças às coquettes, moradoras das pensions d’artistes de Botafogo e do Jardim Botânico, a sociedade carioca descobriu que o sexo podia ser lúdico, mais seguro e até requintado.

Contudo, sexo e hipocrisia nunca deixaram de ser companheiros inseparáveis. Enquanto o sexo alimenta o desejo, a hipocrisia alimenta o preconceito e enche os bolsos dos oportunistas.

Marinheiros, 1907 (Foto: Augusto Malta). Negociando amor pelas frestas.

* O mesmo que gelosia; grade feita de ripas cruzadas intervaladamente, ao modo de uma treliça pouco aberta, que ocupa o vão de uma porta ou janela, com a finalidade de evitar que o interior da casa seja devassado da rua e reduzindo a incidência do calor e do excesso de luz.

** Bordéis mais sofisticados, habitados pelas coquettes.

* Antonio Augusto Brito é jornalista e adora história do Brasil

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